2.30 Horas. O
despertador toca! Sou invadida por um “friozinho” no fundo da barriga… para
além das duas horas mal dormidas, que me deixam atordoada, assalta-me uma
sensação de missão de risco. Afinal, dentro de poucas horas vou sair do país
com 20 jovens sob minha responsabilidade.
Não sou de
repetir destinos. Afinal o mundo é tão vasto e com tantos sítios
extraordinários para conhecer… mas acabei por ceder. Desde que comecei a propor
estas saídas culturais nunca tinha tido tantos alunos interessados e
autorizados a participar! E pronto, lá vamos rumo a Cracóvia, Auschwitz e
Birkenau.
Cracóvia
recebeu-nos com chuva. Não obstante esse contratempo, uma nova visão da cidade
ser-me-ia proporcionada. Instalados num hostel flutuante sobre o rio Vístula,
eis nos preparados para iniciarmos mais uma aventura.
O grupo,
apesar de numeroso e heterogéneo, revelou-se simpático, responsável e cumpridor
dos horários. Apesar das noites animadas pela cavaqueira, nunca saímos sem que
todos tivessem comparecido para o pequeno almoço e nunca houve atrasos
significativos a registar.
No primeiro
dia, pairava nos olhares dos mais novos um certo desânimo e tristeza. Chovia.
Estava frio. A zona da cidade que a nossa guia nos levou a conhecer não era
propriamente bonita…
Cansados e mal
dormidos, arrastamo-nos contra o vento e a chuva até à fábrica de Schlinder. O
ambiente aquecido da fábrica museu, a narrativa da guia local, as imagens e
experiências proporcionadas naquele espaço foram despertando no grupo a
curiosidade e sentido desta viagem: perceber o que aconteceu a partir de 1939
na Polónia e, de forma especial, em Cracóvia. Há momentos na História da Humanidade
que não podem ser esquecidos. Visitar Cracóvia é uma aula de História in loco.
Não me vou
alongar na descrição dos dias desta viagem. O meu enfoque prende-se com aquele
que é para mim o ponto forte: visitar Auschwitz e Birkenau. Da primeira vez
tinha sido uma experiência fortíssima e, apesar de defender que todas as pessoas
deveriam pelo menos uma vez na vida visitar um campo de concentração, reuni
todas as energias positivas de forma a não me deixar vencer pela emoção.
É impossível
ficar indiferente ao sofrimento que um espaço assim respira. É impossível ficar
indiferente à sua enormidade. É impossível fazer de conta que nada daquilo
aconteceu, porque o rosto dos condenados está lá. E quando começamos a ver as
galerias de fotos de pessoas que, tal como todos nós tinham sonhos, planos para
as suas vidas e, de repente, se veem privadas de tudo, inclusivamente da
condição humana… Invade-me uma tristeza sem fim. Como pôde o homem ser tão mau?
Considero estes campos um dos sinais claros da desumanização.
Entre os
milhares de visitantes que naquele dia circulavam em Auschwitz e Birkenau,
destacavam-se grupos de israelitas. Facilmente identificáveis. Um modelo de
botas comum a rapazes e raparigas; camisolas que indiciavam frequentarem um
colégio por serem iguais; as raparigas sempre de saia; os rapazes com kipá;
pelo menos um elemento de cada grupo de alunos ostentava a bandeira de Israel
amarrada às costas. Mas, para mim, o mais insólito foi sem dúvida perceber que
todos os grupos de Israelitas trazem segurança privada!
Os jovens
estavam acompanhados por professores, suponho, mas todos os grupos tinham,
também, um ou dois militares fardados que garantiam a segurança do grupo. Esta
situação incomodou-me. Porque se sentem obrigados a ter segurança privada? O
que temem estes jovens e este povo? Que tipo de educação lhes está a ser proporcionada
que os convence que não estão seguros em parte nenhuma, nem mesmo numa cidade
acolhedora como Cracóvia? Sim, porque a segurança não os acompanha
exclusivamente nos campos, mas em todos os espaços da cidade…
Fiquei
preocupada. O meu esforço enquanto docente de História vai no sentido de que
nunca seja esquecido o que foi feito aos judeus durante a segunda guerra
mundial. Compreendo que para os judeus estes campos sejam um local de culto e
oração, mas havia qualquer coisa naqueles grupos que me incomodava.
Percebi o que
me incomodava quando, mais tarde, na Praça da Concórdia, em plena cidade de
Cracóvia, o meu olhar se cruzou com o de um dos seguranças desses grupos.
Alguns alunos do meu grupo ficaram ligeiramente para trás. Quando me voltei à
sua procura, os meus olhos pararam nos do militar que acompanhava um grupo de
judeus de visita a esse espaço. Estava de costas voltadas para o seu grupo e
olhava para nós. A sensação que tive é que procurava o responsável por aqueles
miúdos “tresmalhados” que se aproximavam demasiado do seu grupo.
Percebi.
Percebi que vivem com medo. Percebi que não confiam em ninguém. Nem mesmo em
miúdos da sua idade, sobretudo se fora do seu país.
Quase 75 anos
depois, a ferida não está sarada. Este povo não confia. Não se sente seguro. E
isso pode ser (já é!) um verdadeiro problema.
Regressei a
casa, depois destes dias, diferente. Correu tudo muito bem. A missão estava
cumprida, mas aquela preocupação ainda me acompanha…
Paula Amorim
Paula Amorim